Caderno esquiva-textos e depoimentos
Equipe de Concepção e Criação
DANÇA ESQUIVA – ocupação da cidade e da história
Este foi o primeiro projeto idealizado pela Cia. para uma ocupação das ruas e parques da cidade de São Paulo. No período previsto para a realização das Intervenções urbanas ESQUIVA, fomos “presenteados” com a possibilidade de participar ativamente, através de nossa arte, das manifestações políticas realizadas no primeiro semestre de 2016, contra o processo de impeachment da presidenta eleita. Sentimento ambíguo entre o dissabor de viver esse momento da história brasileira e a satisfação de contribuir na construção dessas manifestações com a nossa potência criativa, portadora de vozes que foram caladas no curso da nossa história – verdadeira encruzilhada entre a experiência individual e coletiva. Além dos 40 integrantes da ESQUIVA, a coletividade foi se redimensionando a cada ocupação, integrando mulheres que reivindicavam melhores condições na sociedade, artistas que batalhavam uma representação digna no governo federal, o povo que pedia respeito ao processo democrático conquistado nos últimos anos, e tantos mais… Tivemos a oportunidade de experienciar radicalmente a integração entre a manifestação artística e política. Cantando e dançando na cidade, buscamos uma nova forma de habitá-la, de lutar pelos nossos direitos adquiridos no curso da história e pelo reconhecimento dos povos que aqui habitam.
Estou em uma oca, poderia bem ser em qualquer outra parte do Brasil, mas estou na região da Grande São Paulo na aldeia Guarani Tenondé Porã.
O tempo é outro, já não mais comandado por Cronos, quem comanda agora é Kairós.
Tudo ressoa a rito tecido com cotidiano, não há separação. Dentro dessa oca o sagrado e o profano estão delimitados por um aparelho de televisão, nada mais apropriado.
A nossa chegada foi sincronicamente afinada com a chegada de uma caça muito importante para os Guarani, uma anta ofertada por Nhanderú.
O caçador Guarani sem nenhuma palavra ou ar de gravidade, entrou na oca, pegou o que até aquele momento já era pra mim um velho companheiro e começou a tocá-lo de uma forma totalmente nova o que me provocou um espanto e me lançou para uma outra camada de escuta. O violão, instrumento que toco há mais de quarenta anos, agora se transformava em Mbaraka e era tocado em pé envolvido por um abraço onde o tocador apoiava seu ouvido ao bojo e tocava caminhando, como se estivesse escutando os sons vindos diretamente da árvore da música.
Um canto Guarani começa a ser entoado pelo caçador agora músico e de repente uma voz, que me soou como um grito primordial, ecoou bem acima da minha cabeça, era uma voz feminina, mas bem poderia também ser a de um animal e em seguida uma outra voz bem mais grave que a do músico-caçador me atravessa e me chama para o canto direito da oca. Quase sem nenhuma luz percebo a silhueta de uma anciã que cantava marcando o tempo com um bastão que ela batia no chão de terra. A outra voz feminina agudíssima estava ao lado da anciã, e para completar toda essa atmosfera, uma galinha que estava dentro da oca respondia de tempos em tempos ao canto cocorocando como se estivesse realizando um contraponto.
E o que soava de tudo isso era uma música viva que perfurava como um laser todo o espaço e apesar de não entender a língua eu compreendia absolutamente tudo que estava sendo cantado, porque aquilo para mim era o canto da alma.
Essa experiência para mim foi determinante nesse projeto do Esquiva da cia Oito Nova Dança. Tudo o que busquei em termos de música e voz ficou pautado nesse acontecimento.
Os violões sendo levados as costas, os cantos-uivos nas quatro direções, ossos sendo percutidos para mudar as frequencias de um país (mundo interno e externo), espaços de escuta sendo cavados como se fôssemos arqueólogos-vocais tentando encontrar esse canto original ainda ecoando nos rios da nossa cidade agora canalizados sob asfaltos.
esse corpo aqui
fora
observando esse universo
dentro
tão maior que um território
do tamanho de um universo
)inteiro(
mundo de absoluta coerência
corpos construídos de relações
visíveis e invisíveis
pele chão
pele chão
esse corpo agora
aprendendo uma dança
para a qual não existe técnica
mas função e uso
obrigatoriedade do movimento e etc X necessidade da ação
P A R A G E M
esse corpo m e u afetando-se
por um feminino que mostra tua força na quietude
no corpo em seu lugar
permanência
consistência
exatidão
|corpo suporte|
nesse mundo guarani
identidade é corpo
corpo é coletivo
esse corpo eu
buscando o corpo de um chão outro
a dança de um chão outro
sacro PÁ
mãos pés cabeça
saliva terra saliva terra saliva terra saliva terra saliva terra saliva terra saliva terra saliva terra saliva terra
– cavar o chão –
corpo redondo da ação
estado pela repetição
TÉCNICA USO
busca no chão a força
repousa
que concretude de cidade esse corpo tateia
CORPOGRAFIA RESILIENTE
carregar lenha
virar montanha
ser ponte
canal
receber e mandar embora
ser o terreno
o acontecimento
sustentar o céu
deixá-lo cair
errar deserrar-se criança
fazer do desvio uma dança
Esquivar e Resistir
“-Quero falar o que o meu coração diz!” , como diria o mestre xondaro Pedro Vicente, depois de ter assistido a nossa intervenção “Esquiva” na aldeia Tenondé Porã. Foi nesta aldeia que iniciamos nossa jornada, como um pedido de benção, mas também trocando com os Guarani nosso olhar sobre a riqueza cultural que eles nos ofereceram, através do convívio das imersões, nos mostrando um outro modo de ver o mundo.
Outros modos de ver, outras perspectivas, é justamente o que tentamos levar para a rua em nossas intervenções, na intenção de por um momento mudar a frequência daquele lugar. O começo da “Esquiva” já se propunha a isto, ao batermos ossadas de diversos animais, arrancando destas um farfalhar de sons ocos, esse som já mudava e delimitava nosso espaço. Suspenso, permanecia para o que estava por vir. Inevitável neste momento, para nós, não lembrar do popyguaque alguns Guarani (xondaros) tocavam na casa de reza, imantando de forma especial aquele lugar e despertando os que estavam presentes. O popyguasão duas varas de madeira guajuvira, amarradas uma na outra em uma das pontas, um instrumento sagrado para os Guarani. Então, nossa diretora Lu Favoretto fez uma releitura poética e precisa deste instrumento, usando pedaços de ossos ao invés da madeira, que se liga tanto ao trabalho da Cia. Oito Nova Dança quanto traz uma carga poderosa de imagens e significados.
Esta transfiguração do espaço urbano já vinha desde nossa pesquisa com programas performativos. Um desses programas, muito marcante, foi o proposto por Andrea Drigo, onde vocalizávamos “uivos” em meio ao transito da rua, “uivos” que lembravam algo do canto Guarani e que cortavam de maneira impressionante a massa sonora dos carros. Essas vocalizações vieram a fazer parte da intervenção, se configurando hora como chamados ancestrais, hora desembocando em cantos.
Vale também observar que nossa visão sobre o xondaro, inserida na intervenção,além dos preceitos fundamentais da leveza e esquiva, trazia também o lúdico e a alegria, que era como nos sentíamos ao dançar com os guerreiros Guarani.
Outra experiência notável, foi a de ver de perto os músicos que acompanhavam esta dança que utilizavam o violino e o violão de forma muito bonita e particular, a ponto de se transformarem em dois novos instrumentos: a ravé (rabeca, violino com três cordas) e o mbaraka (violão com cinco cordas). Isso foi o que mais nos surpreendeu, pois seu uso é como o de um instrumento de percussão (não à toa o chocalho é chamado por eles de mbaraka mirim) mas que também dá o tom dos cantos. Este contato foi tão especial que quisemos expandir o uso do mbaraka para todos os integrantes da intervenção, na intenção de estabelecer uma mudança sensível de paradigma, alterando o olhar que temos de um instrumento tão comum a nossa cultura. Todos foram capazes de tocar e usufruir deste contato. Este ato não é hermético como somos acostumados, ele é incorporado.
Por uma feliz confluência, nos foi possível apresentar em algumas manifestações que aconteceram na cidade de São Paulo, como a “Arte pela Democracia”. Para os Guarani, manifestações em defesa de seus direitos são uma constante, sendo uma das funções dos xondaros e xondarias estarem presentes nessas lutas políticas. Se configura uma questão essencial de resistência desses povos, através da visibilidade de sua cultura e existência. Esta questão estava permanentemente intrínseca à nossa intervenção “Esquiva”, que percorreu as mais diversas regiões da cidade, lembrando aos passantes desavisados que aqui também vivem povos ameríndios, povos primeiros. Ensinando o que eles nos ensinaram, a dançar e cantar junto, algo que talvez nos esquecemos. Mas nos lembramos. E aqueles que nos viram levantaram suas vozes, protestaram. E eles cantaram. Isso, foi o que o meu coração disse.
Meu encontro com a cultura ameríndia, na arte, se deu no processo de criação que resultou no espetáculo ‘Xapiri Xapiripë, lá onde a gente dançava sobre espelhos’. Nesse trabalho havia uma cena que denominamos “Xondaro” – por ter sido inspirada na dança dos guerreiros Guarani. É uma cena que comumente os espectadores comentam ao assistirem o trabalho. Quando na Cia Oito Nova Dança desenvolvemos o projeto de criação subsequente, encontramos no Xondaro o terreno fértil de pesquisa confluente para a realização da linguagem que naquele momento estávamos a fim de investigar; a intervenção urbana. Então partimos para o ‘Projeto Xondaro’. Nessa pesquisa criativa, tivemos a oportunidade de realizar uma experiência de campo na aldeia Guarani Kalipety, no extremo sul do município de São Paulo. O dia a dia na aldeia se apresentou para mim como uma totalidade harmônica. Ali pude experienciar a coexistência corpo-natureza, ritual-cotidiano, indivíduo-coletivo, arte-vida tão distante do padrão fragmentado da vida urbana. A compreensão da característica imanente dos povos indígenas, bastante difundida nos estudos etnológicos, é redimensionada na oportunidade de passar alguns dias dormindo, acordando, comendo, enfim, existindo na aldeia. O Xondaro, que em meu desconhecimento, percebia como a dança de um povo, passei compreender como uma filosofia de vida para o povo Guarani, seu modo de estar e perceber o mundo em sua integridade.
Demarcação já!
O Projeto Xondaro veio como um resgate da voz carinhosa da minha avó me chamando de Curumim, quando eu era criança (e eu gostava daquele apelido, mas não entendia muito o por que), do meu olhar admirando a beleza dos cestos indígenas na casa onde cresci, do meu interesse em estudar a educação indígena enquanto cursei Pedagogia…
Agora mais consciente, durante a imersão na aldeia Kalipety, sentia uma afinidade muito grande com os valores Guarani, com a sabedoria que esse povo possui de viver integrado à natureza e a tudo, ao ritmo natural do tempo, do fazer e do descansar, da capacidade que possuem de penetrar no silêncio, no vazio do não-fazer, como se cada ação fosse vivida no aqui e agora, por ser realmente necessária e ofertada à Nhanderu. Sua devoção é o que une palavra-alma, corpo-espírito.
Com todas as difíceis questões pelas quais os indígenas continuam enfrentando, muito da essência dessa cultura está se perdendo, mas foi importante ver o quanto ainda ela se mantém viva, focar o olhar mais no Sim do que no Não, na resistência não pela briga, mas pela ginga, espontaneidade e bom humor Guarani.
O mais conflitante foi me perceber dentro e fora, Guarani e Juruá ao mesmo tempo.
Ao longo do processo de criação e realização das Intervenções Urbanas Esquiva, fui me aterrando, me conectando com minhas raízes, exercitando o com-viver, descobrindo que sou realmente esta dualidade e é aí onde habita minha força, a Curumim guerreira que me ensina que a dança é meu próprio escudo, minha espada abrindo caminhos…
antropólogos
Guaranizar a cidade
Esquiva, série de 11 intervenções criadas pela Cia Oito Nova Dança para a cidade de São Paulo, inspirou-se na prática do Xondaro – movimento, dança, jogo, mas antes de tudo modo de vida e de luta que o povo Guarani Mbya tem aprimorado ao longo de séculos de convívio com os Juruá, os “brancos”.
Esquiva é também o jeito que os Guarani (espalhados pela vasta região que vai da bacia do Prata aos limites da Amazônia e dos Andes) encontraram para habitar São Paulo, cidade marcada, desde sua fundação em 1554, quando chamada Piratininga, pela presença de povos Tupi e Guarani. Povos que já habitavam o Planalto ou que eram trazidos para ali à força, seja para serem aldeados e catequizados pelos jesuítas, seja para serem feitos mão-de-obra escrava pelos desbravadores dos sertões, os bandeirantes paulistas.
Para além da subjugação, jamais deixou de haver resistência. Resistência que mimetiza o movimento da esquiva no Xondaro. Não se deixar capturar, fixar, controlar. Não se deixar confinar na metrópole, mas tomá-la como espaço de passagem, travessia. Enquanto alguns grupos guarani fugiam de padres e colonos, outros passavam pelo planalto ansiando alcançar o mar, não raro associado à terra em que nada perece, “terra sem mal”. Em meio a tantas andanças traçavam-se caminhos, erguiam-se novas aldeias.
Hoje em dia vivem em São Paulo cerca de 2 mil índios guarani, distribuídos entre dez aldeias e duas terras indígenas – uma delas localizada no noroeste, ao lado do Parque Estadual do Jaraguá, a outra no extremo sul (distritos de Parelheiros e Marsilac). Boa parte destas terras, reconhecidas como territórios tradicionais, ainda não está assegurada e oficialmente reconhecida pela União.
No 5 de maio de 2016, depois da forte mobilização dos Guarani em São Paulo e Brasília, foi finalmente assinada a Portaria Declaratória da Terra Indígena Tenondé Porã, sul da cidade. No entanto, os Guarani bem sabem que essa luta não acabou, pois as forças antiindígenas que dominam o cenário político brasileiro prometem rever conquistas recentes bem como implementar emendas constitucionais que ferem os direitos conquistados pelos índios desde a Constituição Brasileira de 1988. Isto sem falar nos desmedidos atos de violência que anseiam esmagar a luta pela sua terra.
Apesar de todas as agruras vividas, os Guarani jamais separaram a luta do canto e da dança, fazendo destes um instrumento de resistência. O Xondaro, a um só tempo guerreiro e dançarino, ergue-se como figura crucial desta resistência. Para além das aldeias e fóruns indígenas, ele ganha a ruas da cidade, fazendo-se presente nas mais diversas manifestações.
As 11 intervenções Esquiva nasceram de uma experiência de imersão na aldeia Kalipety (TI Tenondé Porã), que culminou numa grande roda comandada por mestres-xondaro guarani no Pátio do Colégio, marco histórico de São Paulo. Com essa experiência, a Cia Oito deixou-se afetar pela Esquiva Guarani, desenvolvendo sua própria Esquiva, o seu próprio modo de habitar e ocupar a Pauliceia.
A Cia explorou a cidade de norte a sul, de leste a oeste, ocupando sítios históricos (como o Pátio do Colégio e a Capela de São Miguel Arcanjo) e locais paradigmáticos (como o vão do MASP e o monumento às Bandeiras) da cidade de São Paulo. Como nas manifestações guarani, espaços que carregam a memória da catequese e subjugação sendo, portanto, símbolos da ausência indígena, foram investidos de novos significados. O que era ausência e passado tornou-se presença e futuro.
As intervenções ESQUIVA contribuíram, mesmo que sutilmente, para uma Redescoberta de uma São Paulo indígena, Guarani – no passado, no presente e no futuro. Com elas, dançamos e cantamos sobre antigos territórios e aldeias indígenas! Lembrando que debaixo do asfalto ainda há rios e nas bordas da metrópoles ainda restam pedaços de Mata Atlântica, onde os índios podem fazer a retomada de suas terras! Deixando-nos afetar pela experiência histórica, ética e estética dos Guarani, podemos acreditar que um outro mundo é possível. Mesmo num momento tão difícil como este que nós, artistas, antropólogos e Guarani estamos atravessando, mas também todos os milhões de brasileiros, tendo nossos direitos ameaçados.
Mais que nunca é preciso buscar novas fontes de criação e de luta! Mais que nunca é preciso dançar e cantar – dançar e cantar conforme uma nova música, para acordar a cidade
A potência criativa da diferença, essa talvez seja a busca comum dos antropólogos, guaranis e artistas que participaram desse projeto. Neike xondaro! O corpo como movimento político e poético de conexão com o outro e transformação de si.
Leituras e conversas foram nos aproximando do mundo guarani, no qual mergulhamos nos dias em que passamos na aldeia Kalipety para o encontro de xondaro. O cantar alto, para o alto, o dançar sem fim, a escuta por horas e horas de palavras guarani que, quando se desiste de compreendê-las, passam a dançar com a fumaça dos cachimbos.
Os afetos e aprendizados também era intensos entre os Guarani presentes, por estarem juntos, com mestres xondaro de diferentes aldeias, movimentos e palavras.
Os corpos dos artistas já não eram os mesmos, mas jamais seriam corpos guarani. O desafio estético era então buscar não reproduzir o xondaro, e sim o encontro com ele. Tal busca não cessou até a última apresentação, trazendo mudanças a cada uma delas, cuja singularidade também se dava pela atuação incisiva dos lugares, pessoas, cores do pôr do sol.
Uma das apresentações não tinha sido programada e foi um chamado da cidade, na avenida Paulista, onde a dança e o canto dos xondaro foram seguidos por muitos que estavam numa manifestação contra a tomada de poder por aqueles avessos às causas indígenas, dos artistas e grupos minoritários. Que esses corpos e vozes se ampliem e que a antropologia possa sempre estar entre elas, multiplicando possibilidades de existir e resistir.Neike xondaro!
colaboradores GUARANI
Hetava’ekueryoexanhandereko.
Xevype ma iporã, kohetava’ekueryoexanhanderekoamboae’irupi ramo, mba’etahá’ekuerypejaexaukaporãveete ramo, amonguepyoĩveaviipy’aremba’emoporã.
Hetarupi ma ha’ekueryndoupityi rã nhandereko, rã aejepe, va’erikoamonguepy.
NhanderuKuerypejajapyxakaaa’iguiveoexa, oenduaguioikuaapotave, mba’exapanhandekueryjaikoxe, jajapox.
Ha’eramiarupikova’e grupo hetava’ekueryikuainhanderekoa re jave, hetamba’exevype ou, petei rupi ma, enhemomby’a.
Nhandereoma’ẽ, ikuaiheta ara re rireojapotapeteĩtembiapoiporãveva’e, guapixakuerypeoexaukaporave ta, ha’exee.
Ha’e rami rire, amonguepe ma ndojekuaporaĩete rei, va’erixevype ramo ojeguaporã, tarova’iguiveomonhenduarupiguiveamonguendojouporaĩ, rã jepe, xevypeonhenduhá’eojekua porá.
Mba’etaxeevoihetava’emboraeiaupiavi, koha’ekueryayvurupioguerojapyxakava’eregua.Onhembo’emboaeva’eja’earamia.
Ha’e rami ramo xevype ramo noĩ vai etei, mba’etaxeevoiaporaiha’ekuerymba’eaikuaa pra e’y re.
Tovekatukova’etembiapondojekuaporãha’ekuerype, ha’ehá’ekuerypeNhanderuKuerytomoexakã.
Aguyjevete.
– – – TRADUÇÃO – – –
Os Juruá olham nossa cultura.
Para mim é bom que os Juruá vejam a nossa cultura com outro olhar quando mostramos o verdadeirosentido das coisas, assim podemos tocar seus corações.
Eles não vão conseguir entender muitas partes da nossa cultura.Já viram a nossa reza, mas depois de ouvirem vão prestar mais atençãona maneira como queremos fazer e viver.
Quando o grupo de Juruá esteve em nossa aldeia, me vieram muitas coisas, mas com consentimento. Por alguns dias eles nos olharam e depois fizeram um trabalho bonito para mostrar para outros Juruá.
Mesmo que para alguns o trabalho não tenha sido bom, eu achei muito bonito vê-los fazendo tarova’i.Eu também canto suas músicas, em sua língua, como numa outra religião.Então é por isso que para mim, de fato, isso não é um problema, já que eu canto as coisas que eu sei deles.
Espero que esse trabalho tenha boa repercussão, e que Nhanderu o ilumine.
Yvy po kuery nhandere oma’e
Xee ma avy’a, hete va’e kuery nhandereko re oma’e ha’e gui omboete. Guetarã kuery pe ju oexauka ramo py nhandereko, ha’e gui oexa hagua nhande kuery nhande kuaia são Paulo py.
Aguyjevete grupo pe omba’apoa rupi ojapo kova’e tein ha’e kuery, petein tein ombojerovia nhandereko vy ha’e kuery onhemomby’a peixa oexauka hagua amboae kuery pe havi nhade mboetea rupi.
– – – TRADUÇÃO – – –
Não indígenas nos olham
Eu tô feliz que eles olham nossa cultura e respeitam. Eles apresentam para os próprios parentes a nossa cultura, para mostrar que existe a guarani em São Paulo.
Aguyjevete para grupo, foi um trabalho mas que respeitaram a cultura que cada um sentiu no seu coração mostrar para os outros com respeito a nós guarani.
Participantes das Intervenções Urbanas ESQUIVA
2014
Acordei com essa reflexão, “ como é a paixão vista de cima?”, “ Que imagem ela produz a quem a enxerga de fora?” , “Que imagem?”. Comunicamo-nos através das imagem. Tudo são imagens que criamos e transmitimos. Tudo é representação. E eu, o que sou? Não sei. Só sei que vivo presa a representação construída de mim. Mulher, brasileira, branca, 26 anos. Mas isso não sou eu. Isso não é minha natureza. Isso é minha cultura. Mas o que seria então viver desnuda desse papel? O que seria então o viver cru de minha condição?
Estou de repente sozinha, no meio de uma engolidora paisagem da natureza. Depois de passar os limites da cidade, depois de passar os limites do campo, para além das aldeias, onde não há homem branco, onde não há índio, onde não há mais humano. Essa natureza bruta invade-me através de todos os meus sentidos e me desencoraja de vez a acreditar em qualquer tipo de representação. Lá não há nenhum ponto seguro, nenhuma crença. Apenas a existência. Os contornos da paisagem perdem sua nitidez. Não há mais o limite que separa uma cor da outra, as cores aprenderam a continuar-se, formaram sob meu olhar um dégradé infinito. Este meu olhar não apreende mais exatamente onde está o início e fim de cada coisa, não compara mais. Este meu olhar não sabe mais distinguir as fronteiras entre os seres. E assim os seres não me ocultam mais seus significados. Eles só são. Estão. Se mostram. Eróticos por natureza.
Aqui não há a cultura, e por isso não há pertencimento – esse sentimento abominavelmente humano. Me sinto lenta e gradualmente com medo. Percebo que aqui não há nada, há o nada, não há a criação. Aqui há só vazio. Grande vazio. Selvagem, poderoso, prenhe de sentido, latente de potencia. Ou simplesmente vazio. Esquizofreno-me diante dele, com temor e excitação.
Aquela que sou em sonho
. . .
1974
“Longe de ser inocente como uma distração ou uma simples recreação, o canto dos caçadores guaiaquis mostra a vigorosa intenção que o anima a escapar da sujeição do homem à rede geral dos signos por uma agressão contra a linguagem sob a forma de uma transgressão de sua função. O que se torna uma palavra quando cessamos de utiliza-la como um meio de comunicação , quando ela é desviada de seu fim “natural”, que é a relação com o Outro? Separadas de sua natureza de signos, as palavras não se destinam a nenhuma escuta, são elas mesmas seu próprio fim, e, para quem as pronuncia, se convertem em valores. A linguagem pode não ser mais a linguagem sem por isso se anular no que não tem sentido, e cada um pode compreender o canto dos aché, embora de fato nele nada se diga. Falar não é sempre colocar o outro em jogo, a linguagem pode ser manejada por si mesma e ela não se reduz a função que exerce: o canto guaiaqui é a reflexão em si da linguagem, abolindo o universo social dos signos para dar lugar à eclosão do sentido como valor absoluto. Não há portanto paradoxo no fato de que o mais inconsciente e o mais coletivo do homem – a sua linguagem – possa ser também a consciência mais transparente e a dimensão mais liberada. À disjunção da palavra e do signo no canto responde a disjunção do homem e do social para o cantor, e a conversão do sentido em valor é a de um indivíduo em sujeito de sua solidão.“
”Pois é exatamente no fato de se saberem os homens atravessados e levados pela realidade do social que se originam o desejo de não se reduzir a ele e a nostalgia de evadir-se dele. A audição atenta do canto de alguns selvagens nos ensina que em verdade se trata de um canto geral e que nele é despertado o sonho universal de não mais sermos o que somos.”
Pierre Clastres, O arco e o cesto, in A Sociedade Contra o Estado.
. . .
2016
Me sinto desprovida de mitologia. E não falo dos mitos pessoais autobiográficos que todos possuímos. Falo de Mito. E aquilo que não se vive no grupo não é Mito. É idiossincrasia. Mito deveria ser vivido no corpo. Algo construído no corpo comum, algo que os corpos compartilhassem. Algo para além do desejo mesquinho de pertencer, que nutrimos tacanhamente por medo da solidão. Ou se vive o coletivo, ou não se vive. O pertencer não se tenta, não se busca. Se é ou não se é.
Me pego pensando: na condição atual em que me encontro, que experiência vivencio eu hoje em meu corpo que também é vivenciada pelo corpo dos outros? Vivo o caminho de concreto das ruas de São Paulo, vivo as passagens de integração de ônibus e metro. Vivo o transito. Vivo a lotação de corpos que aceitam ser movidos dentro de vagões abarrotados de tédio e cansaço. Paro ao fim do dia adoecida e sinto o peso da vida me levar à cama e me velar o sono. Só consigo pensar que sermos movidos juntos não é o mesmo que movermo-nos juntos.
Porque os Xondaro movem-se juntos? Talvez uma primeira resposta seria porque são Xondaros, porque são guerreiros, por que é isso que os guerreiros fazem. Mas para além do ser social , para além da representação guerreira, por que é que seus corpos se movem? Movem-se para libertar-se de sua condição, movem-se porque só assim, em movimento, escapam a sujeição. Senti-me assim muitas vezes enquanto movia-me em nosso círculo esquiva. Senti-me dessubjetivada, sem contorno, sem fronteira. Através da dança senti-me contraditoriamente sem corpo. Senti-me intensidade, correndo ao lado de outras intensidades, as vezes em confluência com elas, as vezes sob influencia delas, as vezes atravessada, as vezes atravessante. Perdi a referencia de meu corpo individual e subjetivo, processo que nem sempre se dá sem dor, para encontrar-me dentro de um corpo maior, mais amplo, que não sei exatamente se compreende o meu em si, mas que sem dúvida se sobrepõem ao meu e a ele sobrevive. E não me preocupei se me dissolvi nele, não me preocupei se a ele não me senti pertencer, não me preocupei porque aqui o “me” também deixou, ele próprio, de me preocupar.
O abraço da esquiva
Que a memória do mundo seja como serpente de vento: penetre, assopre e avance. Pode grudar ao sabor da maresia, ou mesmo ao sabor da fuligem. Cada um com a sua poeira. Cada pó com seu mundo.
Se não há vertigem, não há fim. Ela, a vertigem, é o sentimento do arrastão, da flecha do tempo que atravessa sem cessar todo o presente. É preciso findar os tempos numa rajada de vento, deixar ser abraçado pela serpente, ouvir com os ossos sua pressão, um diálogo que começa no atrito entre peles e entre vãos.
Minha memória gruda no peito, no pé, na coxa, nos olhos, no cabelo, na pele, no estômago, na coluna, na medula, no sexo… Um banho de chuva lava o que tem de ir, e umedece pra deixar fresco aquilo que quer continuar. Mas depois da chuva, não há nada que continue. O que permanece me descontinua, me desfaz, me deforma, me desconfigura.
Errei. E só por isso tenho vida.
Vivos todos estamos, mas vivos com vida, só aqueles que “erramos”.
Nisso, não há nenhum engano. Que erremos juntos.
Intervir no espaço… Enquanto o espaço não cessa de intervir em mim. Espaço me penetra, me seduz, me enxerta, me enche toda dele…é desejo, é transa, é gozo, e é guerra. Grito selvagem. Não é violência, é selvageria.
Arte pela democracia
Tenondé Jaraguá
São Miguel M’ Boi
Vão da história e geografia
FUNARTE monumento aos boiolas
MASP Museu do Ipiranga
Fora Temer
vale do Anhangabaú
Pátio do Colégio
Que todo gozo seja um grito de guerra por um espaço que não é terra, não é território, não tem fronteira. É um espaço tão escuro quanto a floresta, tão perigoso quando a selva, tão vazio quanto o desconhecido, tão imenso quanto nossa memória pondera.
Estou perdendo o medo de virar bicho, de virar selva, de virar rio. Estou perdendo o medo de virar futuro. Estou perdendo o medo de virar homem, de virar velha, de virar criança, de virar ciborgue, de virar “outros ser”. Estou perdendo o medo de virar.
Estou perdendo o medo do fim.
Me perdi.
A Esquiva pra mim foi um reencontro!
Reencontro com Lu Favoreto, maestria e sutil amizade;
com minhas origens indígenas, raíz;
com novas pessoas, saúde social mental;
com o ritual coletivo, espiritualidade urbana;
na arte de uma dança simples, acessível e alegre, e também resistente, forte, contra a invisibilidade da cultura, na rua, na praça, na cidade.
São Paulo, a grande.
O corpo, os 3 eixos, da periferia para o centro e vice-versa, relação, composição, som.
Re encontros.
Fazer parte, pertencer, visitar, localizar, reconhecer, persistir, existir, resistir, viver e vivenciar um ciclo. Entrar na ideia do outro, criativamente, desapegadamente. A rua, a praça, atitude política da arte, momento Brasil de incompreensibilidade.
Rotina para o acontecimento: horários, funções, mensagens, observação, escolhas, varrer, afinar, arrumar, enfeitar, aquecer, olhar com o corpo os olhos de ver. Respirar para cantar, achar o ar.
Xondaro circular, o redondo do mundo.
Afinar para desafiar, vestir descombinado para compor o combinado, o um conectando com o outro, o grupo, a gente. Juntar as diferenças, variedade gerando uma gostosa unidade colorida.
Nós e os índios, e a cidade.
O indivíduo e a família, compartilhamento, acompanhamento, acolhimento.
Na Esquiva, do começo ao fim diminuímos um tanto, talvez umas 10 pessoas, mas não fomos dizimados, mantivemos a força a energia do propósito da arte, dançar tocar e cantar juntos, pra refrescar o existir, e seguir criando sentidos!
Um brinde de melancia em agradecimento a toda esta experiência vivida! Parabéns a Cia Oito Nova Dança pelo projeto! A nhe té ko
Um breve relato sobre minha experiência na Esquiva
“… ao dançar Xondaro mostramos às nossas divindades que não esquecemos do nosso modo de ser e que, assim como eles, seguimos dançando, nos alegrando e nos fortalecendo…”
A Esquiva foi um reencontro comigo, comigo no mundo, com o mundo. Mas, principalmente, me colocou em contato com o universo indígena Guarani Mbya.
Um super presente!
Obrigada Lu, obrigada Cia Oito!
O léxico registra entre os significados de esquivar fugir e evitar. Esquiva é recusa. Mas, e quando a esquiva se faz atravessada de encontros?
Para mim, a experiência com Esquiva, da oficina às intervenções urbanas, foi fundamentalmente uma experiência de gratos encontros – com pessoas, corpos, pensamentos… Encontro com o dentro, que não é o exercício de abstração em busca do eu interior, mas a total materialidade da ossatura que me habita e que habito. E encontro com o que não sou, com o que é o outro, tantos outros, que passam também a habitar quem sou, a reverberar em mim.
Eu? Outro? Nos últimos anos, venho me perguntando como pensar a dança através da antropologia abandonando justamente estas noções tão caras a uma ciência que, como todo mundo sabe, nasceu colonizadora. Como a antropologia pode pensar a dança sem qualifica-la como exótica, como um produto do outro? Afinal, o outro é apenas uma categoria do pensamento para afirmar quem somos nós, e esse papo já deu o que tinha que dar. Mas é daquelas coisas que uma cultura impregna na gente, e é difícil de arrancar. E então eu vinha pensando como a antropologia pode pensar a dança de um jeito diferente do que sempre fez, e como a antropologia poderia se deixar contagiar pela dança, pelo corpo. E, com Esquiva, eu pude experimentar o caminho oposto: pensar a antropologia a partir da dança. Fazer acontecer a diluição do eu e do outro na dança, nos corpos em dança. E, por outro lado, deixar-se habitar um pouco por aquilo que sempre foi o outro em nossa sociedade, sem a ingênua ou mal-intencionada pretensão de representa-lo.
Me parece que a esquiva do xondaro é uma recusa que afirma a vida guarani, cujo sangue derramado sistematicamente sustenta este projeto que se chama Estado, há mais de 500 anos por aqui. Para mim, a relação que Esquiva estabeleceu com o xondaro guarani é da ordem do atravessamento. E, por meio dessa relação, pudemos também atravessar os espaços cinza da cidade, fazendo vibrar os efeitos que a existência guarani produziu em nossos ossos, violões, cantos, danças… afirmando a potência da vida mesmo diante de toda a morte que a existência do Estado pressupõe. E essa potência se potencializa por meio dos encontros.
Esquiva. Esquivas. Movimentos rumo ao sentimento indígena. Ao sentimento das árvores e monumentos escolhidos. A voz, o toque ao violão, o corpo e seus ossos. Todos esses rumo ao sentimento guarani.
Quando me inscrevi, pensei no propósito direto: o que a cultura indígena poderá ativar em meu corpo? Na mesma época, havia também conhecido pessoalmente Daniel Munduruku, e isso ainda mais me fez a certeza de que esta proposta seria uma grande oportunidade.
As itinerâncias, os caminhos rumo a cada intervenção foram poéticos: processos desafiadores, da relação do corpo com o outro, o pensar sobre a comunicação através dos sonhos e, claro, a esquiva sempre presente, em seu corpo de relações sociais rotineiras, antes, durante e após as intervenções. Não percebi durante o processo, mas agora me acho nessa esquiva infinita, entre o outro e a mim mesma, agora com este alimento dos rituais e maneiras de lidar com a vida da pessoa que é guarani e se mantém nessas raízes.
Cada intervenção era um desafio, uma esquiva diferente e um mantra, e quem sempre desafiou-me mais neste processo foi a Lu Favoreto. O trabalho de voz desenvolvido pela Andrea foi de extrema importância para este sentimento como um todo. Foi, de fato, um grande potencial de abertura dos corpos e suas raízes indígenas.
Sou uma pessoa péssima no decoro de nomes de cada processo/ritual interventivo, e me lembro bem como teve destaques de trabalho de corpo/voz durante o xondaro e os outros momentos como um todo, com cada toque realizado, desde o início do processo onde Andrea e Lu mostravam a relação do violão com o corpo de um homem e como deveríamos sentir esse carregar em nossos braços e peito e assim como o “Hãp, Hãp”, onde Camila trouxe um pequeno detalhe no movimento corporal que fazia toda a diferença no exprimir sonoro. Detalhes que meu corpo sentiu de forma decisiva.
Foi mar, areia, terra, montanha, trovão, olhares e vozes que se encontraram buscando aqui e além. Mar trazido pelos ossos de ancestrais distantes e oceânicos, que me faziam sentir o elo oceânico dos encontros entre povos, e o silêncio em branco dos ecos do extermínio, da vida das gentes que eram essa terra, e hoje são rastros e lembranças.
Eu vi tudo isso em árvores. Em folhas longínquas reagindo aos uivos e ao vento, coloridas e brilhantes pelo sol, invadindo memórias, histórias e imaginações. Invadindo sonhos ou esperanças. E pousando o olhar para lugares que existem longe dos olhos, num tempo que o olhar não pode alcançar, mas o coração sente. E sabe.
Folhas dizendo cores do sol e do céu. Da terra, do sal, e das raízes.
Vi pedaços de sombras e raízes, vi inteiros, vi quases.
Vi encontros e desejos, desencontros, flechas e alvos. Vi terras sendo alcançadas.
Vi terra desterrada, vi desertos, abismos, e forças e lutas, e união.
Vi caminhos solitários, e caminhos em luta, em luto, vi almas e corpos lutando e uivando as feridas, as saudades, as memórias, as dores, os enterros e desterros.
De gente. De bicho. De homem. De mulheres. De grama.
De asfalto. De pés. De pés descalços. De calçados e calçadas.
Assim percorremos juntos, linhas e curvas, círculos, entres, arcos, espaços e vãos, frestas, horizontes. Montanhas e capelas. E celebrações.
Lugares próximos e longínquos. De nós, de si, de mim e ti, deles. Afinal quem somos…
Vividos de perto, percorridos, peregrinando, lugares internos, quebrados e dilacerados, ou inteiros, sólidos, concretos.
Como ossos.
Assim foi meu sonho. Vivido, percorrido. Assim foi a Esquiva em mim…